Dia desses, lembrei da minha infância. Não sei se foi a melhor época da vida, pois muitas ainda estão por vir. Mas aquela foi memorável. Principalmente num mundo onde nem todas as infâncias são memoráveis - algo que chega a me assustar. Lembro de como eu era diferente das outras crianças. Claro, sempre fui risonha e não fechava a matraca, mas eu era madura demais. Mesmo sendo criançona, eu vivia dando lição de moral nos meus colegas de escola. Explicava as matérias, dava conselhos amorosos pras minhas amigas, ficava no sol escrevendo poesia e desenhando as flores mais feias que alguém já ousou desenhar. Não brincava com nenhuma outra criança, meu negócio era ser independente. Pegava a escumadeira da minha vó e ia imitar os calouros do Raul Gil (meu avô sempre viu, automaticamente isso faz parte da minha infância). Reparava nos diálogos adultos para imitá-los nas minhas constantes brincadeiras. Imitava professores, cantores, mocinhas sofredoras, mães desesperadas, vilãs revoltadas, apresentadores egocêntricos, adolescentes inconformados, médicos preocupados, produtores insatisfeitos, jornalistas curiosos... Meu hobby era minha forma de socialização, era quando eu me encontrava com o mundo que via na TV ou na minha frente. Era minha forma de planejar meu futuro, de ousar nos meus pensamentos. Gostava de ter algo na mão: um graveto, uma folha, a famosa escumadeira, um controle remoro, um cabide (assim que minha mãe viu, tirou da minha mão), uma caneta, um telefone velho, um broche... Me escondia num quarto barulhento, numa varanda cheia de mosquitos... Por vezes fui para o banheiro só pra brincar sozinha. Não deixava ninguém ver. Era como um ritual sagrado, uma coisa que só eu entendo. Nem minha mãe via. Meus primos tentavam filmar, já briguei com colegas da escola por causa disso. Decidia qual seria minha mais nova "profissão dos sonhos", meu perfil de esposa, de mulher... Me sentia num lugar mágico. E recusava as bonecas que alguns tios insistiam em me dar, pensando que assim eu seria diferente... Acho que essa "fuga" nas minhas brincadeiras me deixou próxima da família, dos meus ídolos... De mim mesma, por que não?
Tenho lembranças incríveis, daquelas com data e local. Lembro-me das tantas férias que passei no litoral, da espada de Dom Quixote (ou seria São Jorge?) da minha madrinha que entortei numa das minhas brincadeiras, dos meus "ataques de cigana" com minha tia (sempre dizia a mesma coisa e ela chorava), das músicas que sempre cantei (de Chiquititas a Vercillo), dos programas de TV (sexta-feira só era sexta-feira quando tinha "os normais"), dos meus arcos de cabelo espalhados pela casa, dos meus fins de semana na casa da minha tia, dos conselhos que minha mãe me dava e me dá até hoje ("se algum menino chegar perto de você, dê um chute nas partes baixas!"), da minha bisavó e sua sabedoria tamanha, do meu amor pelo mar, do meu amor pelo Hugh Grant e pelo Reynaldo Gianecchini, da minha felicidade quando saía com meus pais e minha madrinha, dos bordados que minha vó me ensinava a fazer, das balas que meu avô deixava na minha mochila, das minha mochila do Harry Potter, dos meus verdadeiros amigos tão diferentes e tão especiais... Ufa!
De todas essas lembranças, fica difícil definir a melhor. Hoje, nas vezes em que me encontro cheia de dúvidas e teorias, penso que era bem mais fácil quando eu era criança. Era só pegar minha escumadeira, fingir que eu era a Cláudia Raia e discutir as queixas que eu sempre ouvia. Foi bem mais que uma "fase fácil" ou especial. Foi o momento em que eu me descobri de verdade, bem mais do que na minha adolescência. Ser uma criança descodificada é algo sobrenatural, perfeito, absoluto, maravilhoso.
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