Somos feitos de carne, mas não vemos pedaços da nossa carne à
venda no mercado. Médicos dizem que as lágrimas servem para lavar os nossos
olhos, mas a gente sempre dá um jeito de botar uma cachoeira pra fora,
independentemente da situação. Rejeitamos hipocrisias, mas não perdemos
situações em que a falsidade seja exaltada. Torcemos o nariz para o que chamam
de popular, mas nossos cérebros estão sempre abertos para músicas com letras
curtas e melodias decoráveis. Adoecemos, e ainda assim não vamos ao médico –
sentimos dor de cabeça e então passamos a acreditar que realmente morreremos um
dia. Enterramos quem amamos em caixas tristes com overdose de pólen, e depois
seguimos. Calçamos sapatos e sentimos dor, mas não estamos nem aí, porque já
achamos o pé uma parte tão feia do corpo humano que sua função principal chega
a ser esquecida perto da necessidade de fazer o bicho ficar bonito. Queremos
educar o mundo com gritos e violência, tapas e tapumes, mas sem nenhuma
conversa. Não somos do time da conversa.
Eu como cachorro-quente sem salcicha. Eu carrego o celular e
imagino o bicho comendo comida de verdade enquanto está ligado ao fio. Eu não
sei ver fim de novela sem chorar. Eu gosto de quem não é ouvido por ninguém. Eu
vejo o que todos vêem, mas às vezes eu acho que ainda falta muita coisa pra
enxergar. Eu gosto de dormir, mas às vezes não consigo. Eu gosto de dançar, mas
nunca danço. Eu gosto de cantar, mas por respeito aos tímpanos alheios,
mantenho-me no ritmo do pézinho que bate. Eu quero brilhar, porque todo mundo
pode brilhar – mas a maquiagem da Avon leva isso a sério e faz a sombra que eu
passo nos olhos invadir as bochechas, então me sinto uma globeleza, só falta
aprender a sambar.
Eu sei dormir sem fechar os olhos, mas não sei fechar os
olhos sem dormir. Não preciso de sono pra sonhar, não preciso de medo pra agir,
não preciso de força pra lutar – só a subjetiva, até agora. Não gosto de
escuro, não entendo elevadores, não me deixo levar pelos encantos da física e
não suporto quem faz da língua portuguesa uma boneca inflável furada. Eu tenho
medo de morrer – mas se isso acontecer um dia, aí eu contrato a Stephanie Meyer
e ela me transforma em vampira. Não saio, não fumo, não bebo, não mato, não
roubo – só sou sem graça. Mas quem precisa de graça num mundo onde tudo tem
preço, não é?
Não falo de mim. Mas resolvi falar. Não entendo meu jeito.
Mas resolvi respeitar. Não sinto por sentir. Mas se a dor apertar e a dipirona
não resolver, tudo bem, a vida não acaba por aí, eu vejo a novela das seis e
acredito que um dia eu fui a Elisa. Não choro por chorar. Mas se eu tiver que
sorrir por sorrir, tudo bem, eu sorrio, afinal de contas, eu já ri com os
Trapalhões, eu sei rir de alguma coisa sem motivos. Eu sei fazer alguma coisa
diferente de bolo de massa pronta. Eu sei sentir alguma coisa sem ter que
escrever um livro pra botar o amor pra fora. Eu sei dizer alguma coisa sem
precisar fazer um texto com 600 palavras. Eu sei respirar sem engasgar.
Eu tô no caminho. Já me aceitei faz tempo. 17 anos, mais
precisamente. E olha que ainda faltam uns 200 – pretendo bater o recorde do
Niemayer.
577 palavras. Ops, 581.
(Ouça The age of worry, John Mayer)
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