segunda-feira, 19 de março de 2012

Ser por ser

Gostamos das mesmas coisas. De olhar o céu, de fingir que sabemos contar estrelas, de venerar ídolos que nem imaginam nossa existência, de chocolate quente no ápice da madrugada, de pão dormido e renegado, de suco de groselha, de café quente, de música velha, de geladeira aberta para excitar o pensamento, de luz e lucidez quando tudo anda às escuras, de vento no rosto e piscina com quê de oceano, de orla, de praia, de areia no pé, de cabelo curto, de olho morto, de gente quieta, de unha roída, de chão de taco, de filme ruim, de miojo com ovo, de guitarra dominada, de verbo conjugado, de moda própria, de choro clássico, de sorriso fértil e de cabeça a mil. Gostamos de nos inventar porque gostamos de existir. Gostamos do existir. Gostamos do desaparecer. Amamos a magia de sermos tais, de sermos iguais, de sermos por nós mesmos. Amamos gostar do que gostamos, mas será que gostamos de amar o que ou quem amamos?
Somos. Tão simples e compostos. Tão próprios. Tão substantivos. Mas preferimos os adjetivos.
Somos nossa própria invenção guiada pela insônia de domingo, pela vontade insana de seguir com planos que desmontam como maquetes de isopor. Nos guardamos em potes, em peneiras cerebrais, em destinos que se confundem numa geografia incompreensível. Somos o trocar de palavras, a vista embaçada, o cheiro de lavanda invadindo o quarto e irritando as narinas. Somos as metáforas que colhemos em nosso jardim particular. Somos a hortaliça que esverdeia os pratos engordurados, a mesa vestida de banquete que serve apenas uma pessoa. Somos o tempo que passa, passageiros vagando sozinhos por aí, a encontrar novos tatos para dissolver o tédio e a angústia em folhas de papel. Somos canetas sem tinta que rabiscam no ar pensamentos mortos. Somos a vida que encontramos em qualquer esquina, em qualquer obra do acaso, em qualquer vertigem.
Somos amadores. Não somos amantes. Mas se pudermos ser, que sejamos então.


(Ouça Tipo um baião, Chico Buarque)

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